terça-feira, 6 de julho de 2010

Fumar tornou-se hábito primitivo e sem lugar no século 21

OPINIÃO

Fumar tornou-se hábito primitivo e sem lugar no século 21

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

Acendo um cigarro. É horrível o aroma que ele exala. São infernais os males que produz.
Por favor, não fume. Fumar é hábito primitivo, sem lugar no século 21.
O fumante é um sujeito arcaico, um órfão ridículo dos romantismos modernos e das utopias malsãs, emparedado entre duas épocas.
Acabou a época em que fumar ajudava a viver a vida, feita de misérias incontornáveis, confrontos ideológicos sangrentos e paixões inúteis.
Vejo a foto dos soldados fumando no front inútil da Guerra de 1914, quando o hábito do cigarro se espalhou como peste. Vejo Faulkner e Kerouac, com o cigarro à boca, na inútil tarefa de fazer a literatura abarcar o mundo.
Era um tempo de urgências, pois a vida não valia grande coisa e não compensava medi-la na extensão, mas sim na intensidade dos atos, das palavras e das lutas.
Fumar significava suspender o tempo e criar um intervalo de bonança. Ou acelerar o tempo e sonhar, entre tragadas, que o futuro se precipitava sobre o presente, soprando revoluções.
Agora, fumar é anacronismo. Vivemos na melhor das épocas: os remédios corrigem os desesperos, as ideologias só propagam felicidades, a liberdade é problema da saúde pública. Fomos todos maravilhosamente "pervertidos pelo conforto", como previu Rimbaud.
Acendo um cigarro.

domingo, 30 de maio de 2010

Ou não

Caetano Veloso
Cantor e compositor

Mesmo que tenha sido uma confusão nascida da ignorância de alguns humoristas, é uma honra para mim ter herdado o bordão “ou não” de Walter Franco. Há quem diga que mereço, não a proximidade de Walter, mas as sugestões pejorativas do bordão.

Muita gente vê indefinição suspeita no que para mim é independência política.

Em tempos de eleição, essas reduções tornam-se mais grosseiras. Pois bem: vou pensar em voz alta. Não me importo com Dilma ou Serra.

Sou Marina de todo o coração.

Se tiver de escolher entre os outros dois, acho que prefiro Dilma, já que, como eu disse na entrevista ao “Estadão” (que ficou famosa por causa da palavra “analfabeto”), Serra está à esquerda da política econômica de Lula (a matéria no Globo com Serra dizendo a Miriam Leitão que “o Banco Central não é a Santa Sé” – com aquelas fotos apavorantes– poderia ser criticada pela “Caros amigos” como alarmismo suspeito, imposto pelo poder dos rentistas). Ou seja, eu prefiriria Dilma porque ela defende a independência do Banco Central.

Aconselho a leitura de “Aqui ninguém é branco”, de Liv Sovik. É a mais complexa e corajosa reflexão sobre raça no Brasil dentre as que vêm do lado dos racialistas. Mas meu comentário, dirigido a Felipe Hirsch, contrastando o racismo popular com o racismo de elite, eu o reenviaria a Sovik. Acabo de chegar da inauguração do Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral: grupos de garotas locais, pretas, mulatas e brancas, chegavam bem arrumadas e tomadinhas-banho, sorrindo entre si. Liv diz, com ironia, que “têm razão os que contrastam os EUA com o Brasil, valorizando o quadro brasileiro: para os brancos, especialmente, ele é muito melhor”. Nem uma gota de ironia em minha recomendação do livro. Leiam e verão que ela vai muito além dessa canelada.

Tenho 67 anos. Cresci, amadureci e envelheci ao som da “Aquarela do Brasil”, o nosso hino nacional oficioso,em cujo segundo verso o país é chamado de “mulato inzoneiro”.

Nunca vi ninguém estranhar o uso da palavra “mulato” para definir o país. Mas nada me dizia que não houvesse brancos no Brasil.

Meu pai era mulato.

Minha mãe é branca.

Sendo ela de extração mais humilde, era ela quem usava a expressão popular “eles que são brancos, que se entendam”, quando se alegrava por não ter de entrar em certas disputas. Mesmo que fossem entre meu pai e Luís de Gaspar, um preto retinto que era amigo dele. Gaspar era o português que tinha uma loja de ferragens onde Luís trabalhava.

Depois Luís abriu a sua própria. Todos diziam “segunda é dia de branco” – quer dizer: dia de trabalharmos para os patrões. Isso independentemente da cor de quem dizia – e mesmo da dos patrões.

A ideia arraigada de que somos um país mulato não nos impedia de distinguir explicitamente entre brancos e pretos, ou mulatos, caboclos, sararás. E sempre foi evidente que “branco” indicava vantagens estéticas, econômicas e sociais.

Liv vai além do habitual: fala da invisibilidade do branco e analisa a mídia. Tudo bem que ela comente textos da “Veja”, mas por que nem ela comenta texto sem que Paulo Francis, o mais adorado e imitado jornalista brasileiro, louvava a retomada do projeto de eugenia por trabalhos como “A curva do sino”, que diz provar ser a inteligência média dos estudantes negros americanos inferior à dos brancos? Exibir simpatia por coisas assim era reação aos movimentos negros. Esses movimentos eram necessariamente racialistas. Passou a haver, então, uma reação antirracialista, como, por exemplo, a de Antonio Risério, e uma reação racialista, como a de Francis. A menina que disse a Liv, em Salvador, “aqui ninguém é branco” tem posição próxima à minha, que é próxima à de Risério e avessa à de Francis.

O presidente Lula ensaiou o anúncio de uma negociação de peso com o Irã. Vejo Lula como um grande personagem épico. Ele pode ser atraído pelas baixezas do populismo.

Mas, até aqui, tem pesado mais sua vocação para representar o que o Brasil tem de original. Parte da sua euforia – que pode ser intragável – é reconhecimento disso.

É narcisismo salutar, abençoada vaidade histórica.

A tentativa de costurar um papo entre os aiatolás e a capitalistada tem, por mais que a analogia com Chamberlain (lembrada por Diogo Mainardi) proceda, mais peso do que todas as outras bolas na trave que ele e Amorim deram antes.

Sou anticarlista, não fundaria a Embrafilme, não julgo Pinochet pelo que ele deu de útil ao Chile. “The Economist”, falando do óleo no Golfo do México, diz que “o congresso americano deve endurecer a vigilância e aumentar as penas para os faltosos. Mas, infelizmente, não haverá nenhum esforço para dar conta dos maléficos efeitos colaterais do petróleo. Pois vazamentos estão longe de ser o efeito mais deletério da dependência do petróleo de que sofrem os EUA: aquecimento global e financiamento de déspotas estrangeiros vêm no topo da lista”. Essas são palavras editoriais de uma revista liberal inglesa. É por coisas assim que os princípios liberais resistem mais em mim do que a hipótese comunista.

O que se sobrepõe a ambas as visões é o sebastianismo de Agostinho da Silva.

Este era claramente antiliberal em economia, mas tinha horror a regimes de força.

Muitas das suas tiradas são espetaculares. A minha preferida é: “Portugal já civilizou Ásia, África e América – falta civilizar Europa”. Gosto porque falamos português. O mundo lusófono tem sido, há já séculos demais, um ridículo histórico. A mera existência do Brasil parece dizer “chega!”.

Publicado em A Tarde, 30/05/10


terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Apologia de Buenos Aires

JOÃO PEREIRA COUTINHO
Apologia de Buenos Aires
Amar Buenos Aires é como dançar em Buenos Aires: uma suspensão da realidade antes de regressar à realidade
AI, BRASIL, terei perdão? Nas vésperas de viajar para Buenos Aires, confessava o crime aos meus amigos paulistanos. Eles respondiam com piadas e piadas e piadas. Na minha qualidade de português, a coisa soava familiar. "Piadas" e "portugueses" são o casamento brasileiro mais perfeito. Com uma diferença: nas piadas, os portugueses são toscos e razoavelmente analfabetos. Argentinos são o contrário: arrogantes e profundamente egocêntricos. Relembro uma: vocês sabem por que o argentino gosta de subir à Torre Eiffel? Resposta: para ver como fica Paris sem ele. Obrigado, Nelson Ascher.
Mas, desculpa, Nelson Ascher: a piada é tão boa, e tão elegante, que só pode ser obra tua. Ou, pior ainda, obra de um argentino. Porque eles são bons e elegantes. Chego a Buenos Aires com o cérebro programado para não ceder às sereias. Meia hora depois, eu e as sereias dançamos o tango numa milonga portenha. Ai, Brasil, terei perdão?
A culpa não é minha. A culpa é do Altíssimo. Dizem os textos sacros, por Ele inspirados, que a onipresença é prerrogativa do divino. Mentira. Buenos Aires é a exceção. Explico. Vocês podem viajar para a Inglaterra. Vocês podem viajar para a Itália. Mas vocês não podem viajar para Inglaterra e Itália ao mesmo tempo.
Eu confesso que já viajei para ambas. Já morei em ambas. Já fui feliz e infeliz em ambas, como compete à natureza humana. Com os ingleses, aprendi a ler, a escrever e a pensar. Com os italianos, talvez a amar, porque ninguém ama a vida como eles. Mas faltava sempre a outra parte: a elegância intelectual britânica torna-se cansativa e mesmo estéril sem o vigor da teatralidade mediterrânica. E vice-versa. Não agüento tanto gesto e tanto excesso sem um minuto de melancolia outonal. Como viver dois tempos num mesmo?
Buenos Aires é a cidade dos dois tempos. E os argentinos, numa combinação perfeita e muito deles, conseguem ser elegantes e teatrais, apaixonados e racionais, elevando a vida comum a um número pleno de lirismo e encantamento. Não são os restaurantes de Palermo Viejo, os cafés da 25 de Mayo ou os livros do cinema Ateneo, onde me arruinei sem culpa nem retorno, que transformam Buenos Aires num milagre em forma humana. São os próprios seres humanos. Só os argentinos seriam capazes de transformar uma corrida de cavalos no mais belo e passional tango que existe.
Chama-se "Por una cabeza" e foi Gardel quem o fez para os pares de todas as idades que desfilam à minha frente. Contemplo. Dizem que o tango é uma emanação do sexo, com os corpos em confronto sem refúgios. Talvez seja. Mas, olhando mais de perto, percebo agora que a comparação só é possível não pelo movimento dos corpos mas porque a mulher se rende à condução do homem e executa os passos de olhos fechados. É uma entrega total em que um dos sentidos se apaga para que despertem todos os outros.Amar Buenos Aires é como dançar em Buenos Aires: uma suspensão da realidade antes de regressar à realidade. Antes de subirmos ao espelho de todos os dias para vermos, afinal, como ficamos sem Buenos Aires.